sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Jogando


Começou a brincar com aquele jogo que contaram que era muito imersivo, disseram que se sentiria parte de um mundo diferente, com suas próprias regras, aventuras e perigos. Era certo, logo o resto das coisas deixaram de interessar.
Em qualquer momento se dedicava a continuar explorando. Roubava horas do sono para seguir recorrendo aqueles labirintos inacabáveis, buscando símbolos que o permitíssem continuar.
Ontem, depois de muito esforço, conseguiu entusiasmado entrar por fim na sala do tesouro, mas descobriu que havia deixado de fora a chave de saída. Hoje não pôde ir trabalhar.
Entre no jogo e o ajude.
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sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Razões

A razão do algoz cego que matou seu filho por erro.
A razão da mãe que se lançou com seus filhos ao vazio.
A razão do ator que esqueceu seu papel e disparou ao público.
A razão de todos que chegaram com pergaminhos e agora exibem cabeças.
A razão de coroar alguém por um gol.
A razão do jovem que se injeta auroras boreais nas veias.
A razão dos que se jogaram na água e se afogaram para salvar um bebê.
E a razão do bebê já morto na água gelada.
A razão do moribundo, louco e bêbado, confundindo tudo sem parar de rir.

E também a razão do bailarino que cai.
A do poeta que vende versos marcados.
A do arquiteto que constrói catedrais sem deuses.

Razões?

Sim
E também a razão do frio, do medo, do azar e da dúvida.
E também dos gritos.
A do ancestral rugindo para sair.
E a da fome de sangue alheia.

Razões não faltam.


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segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Mais ou menos como sempre


Aquilo fazia algo com os neurotransmissores, ficava grudado na pele. Recebia sinais do sistema nervoso, processava e devolvia modificado ao gosto do usuário. Tudo ordenado por controle remoto, que muitos levavam no bolso sempre. Quem se calava, agora se atrevia falar. O medo se ia, o sono vinha. Logo, a pena e a dor foram esquisitisses de uma minoria. Alguns se construíram como queriam ser, mais valentes e nobres, mais sensíveis. Outros enlouqueceram, bloquearam seus propósitos e ficaram inertes diante da televisão sem canal e com seus ruídos acinzentados. Outros foram escravos do mundo formatado, ou poetas suicidas, ou heróis involuntários de um castelo em chamas.
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sábado, 1 de novembro de 2008

Futebol e cutículas




Depois da pelada de sábado à tarde, todos tomavam cerveja em um boteco chamado Churasquim do Moranguim. Local distinto.
Conversavam em volta de uma mesa de lata amassada e enferrujada que tinha uma estranha propaganda da cachaça Balalaica.

- A melhor cantada que vi foi de um cara que chegou na 'mina' e disse que ela tinha pés maravilhosos. Abaixou-se e beijou os pés dela. A mina caiu no papo na hora! - Contou alguém.

- Éca! - Disse o mais novo da turma.

- Como assim, éca? - Retrucou outro. - Você não idolatra os pés das mulheres?

- Blerg! Eu não!. - Exclamou o jovem.

- As mulheres cuidam dos pés para que nós os beijemos. Elas tiram até cutículas, para seus pés ficarem lindinhos.

- Eu hein! Éca!.

- Eu também tiro cutículas! - Disse o "presidente" da pelada. Quarenta anos, barrigudo, baixinho, meio careca, macho. Joga bola três vezes por semana e bebe sete. Namora uma japonesa e uma ruiva, em períodos diferentes (claro). Adora carros e só usa roupas de liquidação. O cara é o ídolo da galera.

- O quê? - Perguntou o magricelo com espuma de cerveja no beiço, atordoado.

- Você tira cutículas?

- É, eu tiro as cutículas dos pés! Porquê!?

O 'Maneco' e o 'Zulu', que estavam sentados ao lado do presidente, se olharam e se afastaram. Podia ser contagioso.

- Você tá falando sério?

- Sim, por quê?

O Zulu botou o pé descalço na mesa. Havíam acabado de jogar bola e a prancha que era seu pé estava cheia de calos, bolhas de sangue e o cheiro era digno dos gatos mortos de onde o Moranguim tirava a carne para fazer o churrasquinho.

- Isso aqui é o pé de um homem!

- Não, isso é o casco de uma vaca. - Disse alguém.

- Presidente, você tira cutículas? Pra quê? - Perguntou o Zezão, antes de execrá-lo.

- Higiene!

Olharam-se todos. Ele não seria mais o ídolo! Homem que é homem não tira cutículas!

- Você tá virando metrossexual? Também joga bola de calcinhas, igual o Beckham?

- Não, só tiro cutículas!

- Mas isso é coisa de mulher! Ou pior: de mariquinha! - Disse outro mais exaltado.

- Pô, é só cutícula!

Mudamos o rumo da prosa. Começaram a discutir sobre uma nova eleição para presidente da pelada.

- Quem aqui não faz cutícula? - Muitas mãos se levantaram. - Quem não faz a barba todo dia? - Algumas mãos se abaixaram. - Quem não usa perfume? - Menos mãos. - Quem lê jornal no banheiro? Quem coça o saco em qualquer lugar? Quem canta mulher gostosa e feia? Quem escuta futebol no rádio? - Depois de tantas perguntas não restou ninguém! Todos tinham algo que os desabonasse como verdadeiros machões.

- É, presidente, você continua no cargo. O mundo mudou! Os homens de hoje tiram cutículas!









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